Em nosso mundo sempre conectado, é raro experimentar o verdadeiro isolamento.
Também é extraordinário testemunhar como as pessoas vivem em um dos lugares mais isolados da Terra.
No início deste ano, durante uma expedição fotográfica única para a comunidade mais remota do hemisfério ocidental, consegui fazer as duas coisas.
Ittoqqortoormiit, na Groenlândia, é uma vila de 370 pessoas com casas coloridas que fica entre o maior parque nacional do mundo, ao norte, e o maior sistema de fiordes do mundo, ao sul.
Não há estradas para Ittoqqortoormiit; a única maneira de chegar lá é de helicóptero, barco (no verão), motoneve ou um dos dois voos semanais para o aeroporto Nerlerit Inaat, a cerca de 40 km de distância.
Um dos voos tem origem na Islândia, e o outro na Groenlândia ocidental.
Localizado acima do Círculo Polar Ártico, a 70°N, e a aproximadamente 800 km da cidade mais próxima, o quintal de Ittoqqortoormiit é uma região selvagem gelada e indomável, lar de ursos polares, bois-almiscarados e milhões de aves marinhas que fazem ninhos em icebergs.
O gelo marinho congela a vila por nove meses por ano, mas isso oferece um meio de locomoção para os habitantes inuítes de Ittoqqortoormiit, que viajam de trenó puxado por cães para caçar.
A vila celebrará seu centenário em 2025, mas nos últimos anos sua população vem diminuindo (35% desde 2006, segundo algumas estimativas), pois os jovens estão cada vez mais migrando para as cidades para estudar ou seguir carreiras diferentes da tradicional caça ártica de seus antepassados.
Além disso, como o aumento das temperaturas faz com que o gelo marinho congele mais tarde e derreta mais cedo, Ittoqqortoormiit se encontra na linha de frente das mudanças climáticas, o que está ameaçando ainda mais a cultura da comunidade indígena.
Minha expedição de inverno a Ittoqqortoormiit não foi apenas uma aventura que me tirou da minha zona de conforto; foi uma das experiências mais desafiadoras que já tive.
Depois de voar de Reykjavík (capital da Islândia) para Nerlerit Inaat, passei cinco dias no gelo em temperaturas despencando até -40 °C.
Viajei em trenós puxados por cães, dormi em pequenas cabanas de caçadores (sem camas, água encanada ou aquecimento) e percorri 45 km em uma motoneve em meio a uma nevasca com ventos de 80 km/h.
No final das contas, isso acabou sendo muito mais do que uma expedição fotográfica, pois ofereceu um raro vislumbre da vida em uma das paisagens mais remotas da Terra.
Também revelou como os moradores restantes de Ittoqqortoormiit estão lutando para adaptar suas tradições profundamente enraizadas a um mundo em rápida mudança.
Batismo do frio
Minha viagem foi organizada pelo renomado fotógrafo Joshua Holko, que providenciou dois guias locais inuítes, Åge Danielsen e Manasse Tuko.
Eles conduziram eu e mais dois fotógrafos pelo gelo em seus trenós puxados por cães do aeroporto Nerlerit Inaat até Ittoqqortoormiit.
Tínhamos o objetivo de capturar algumas das paisagens polares mais austeras e deslumbrantes da Terra.
Montamos acampamento em pequenas tendas perto do aeroporto na primeira noite, pois as temperaturas estavam em -30 °C e caindo.
Depois de serrar bacalhau congelado na neve, como um carpinteiro cortaria madeira, e fervê-lo em uma panela de gelo derretido, Danielsen e Tuko anunciaram que o jantar estava pronto.
O bacalhau estava excelente, embora espinhoso, mas estávamos mais preocupados com o que nos esperava.
Eu nunca tinha sentido frio assim antes. Além disso, enquanto nos encolhíamos, ventos fortes batiam nas tendas e os cães de trenó uivavam quando raposas do Ártico — e talvez ursos polares — passavam.
Com a queda da temperatura, tive cãibras nas pernas. Foi realmente um batismo do frio.
Ícones nacionais
Logo após o café da manhã, Danielsen e Tuko começaram a preparar nossos suprimentos.
Eles habilmente transformaram os trenós vazios em contêineres cheios de bolsas, caixas térmicas, estojos para câmeras, comida para cachorro e muito mais.
Eles amarraram os produtos com cordas — demonstrando habilidades que, segundo eles, foram passadas de pai para filho.
Sentamos dois em um trenó com um guia na frente conduzindo os cães.
Nos dias seguintes, 12 cães em cada trenó carregaram mais de 450 kg em carga e correram com força por até 25 km por dia.
Acredita-se que esses amados animais (chamados qimmiit na língua inuíte da Groenlândia, Kalaallisut), que são de uma raça do tipo husky, foram trazidos da Sibéria para a Groenlândia há cerca de mil anos pelos ancestrais diretos dos inuítes, o povo Thule.
Os cães são um ícone nacional na Groenlândia.
Eles não apenas representam uma parte importante da cultura inuíte e sua conexão com a terra, mas, como logo descobriríamos, também têm a vantagem de serem muito mais silenciosos do que as motonaves.
Isso aumentava nossas chances de fotografar a vida selvagem — ou, no caso de Danielsen e Tuko, quando eles não estavam nos guiando, de caçar animais selvagens.
Seres pré-históricos
Certa manhã, depois de comer uma torrada aquecida com uma faca, Danielsen apontou para as montanhas enquanto os cães nos carregavam 10 km a oeste de Ittoqqortoormiit.
Olhamos para cima e vimos quatro bois-almiscarados em pé, a uma certa distância.
Pesando até 400 kg, essas feras de aparência pré-histórica, com chifres curtos saindo de suas bochechas e grande cobertura de pelos pretos e castanhos esvoaçantes, eram tão fotogênicas quanto imponentes.
Descemos dos trenós e andamos com muito cuidado, pois Holko nos avisou que essas relíquias da Era Glacial podem ser ariscas e agressivas.
Mova-se muito rápido e elas fugirão; chegue muito perto e elas atacarão.
Depois de uma hora fotografando essas criaturas, elas começaram a subir pela montanha.
O caçador
No nosso terceiro dia, Danielsen mencionou que era dono de uma cabana a cerca de 25 km de distância e nos convidou para passar duas noites lá.
Ficamos honrados com sua gentileza — especialmente porque sua casa estava estrategicamente posicionada para avistar ursos polares.
A cabana pintada de azul brilhante era grande o suficiente para um pequeno sofá, cadeira, pia, fogão e um raro vaso sanitário para usar sentado.
Mas a característica mais notável era o grande gancho de abate pendurado no teto.
Isso nos lembrou que, embora Danielsen possa ter assumido a função de guia para complementar sua renda, a caça é sua paixão, sua profissão e sua tradição ancestral.
Por lei, os caçadores aqui não têm permissão para vender carne ou peles de suas caçadas — ou, no caso do boi-almiscarado, para exportá-las.
Em vez disso, a carne só pode ser usada como alimento e material para roupas para as famílias nativas, como tem acontecido por gerações.
Tradição familiar
Enquanto estávamos em sua casa, descobrimos que Danielsen não era apenas um orgulhoso caçador inuíte, mas também pai de quatro filhos.
Ele explicou que seu pai era caçador, seu avô era caçador e ele esperava que seu filho mais novo seguisse seus passos um dia.
Holko havia encontrado um crânio de um boi almiscarado no dia anterior e o deu a Danielsen, que ficou radiante.
Perguntei a Danielsen se eu poderia fotografá-lo segurando o crânio, e ele alegremente concordou.
Mais tarde, durante o jantar, conversamos.
“Olhe para essas fotos”, disse Danielsen sorrindo, enquanto me mostrava seu celular.
“Este é meu pai, ontem.”
Na imagem, o pai dele estava de pé sobre um enorme urso polar morto no gelo.
“E olhe para estas”, mostrou com orgulho fotos de três enormes ursos polares adultos que ele havia matado.
Devido ao aumento das temperaturas nas últimas décadas, os ursos polares foram forçados a mudar seus padrões de migração, aproximando-os de comunidades como Ittoqqortoormiit e representando perigos reais para as pessoas e para si próprios.
Esculturas de gelo naturais
Da cabana de Danielsen, seguimos 20 km para o leste.
Enquanto nossos trenós deslizavam sobre a neve e o gelo, eu me maravilhava com o cenário e a serenidade que me cercavam.
A luz era mágica: enevoada e melancólica, com raios suaves de sol acariciando o gelo azulado.
Passamos por icebergs imponentes e formas de gelo compactado que a natureza esculpiu como obras de arte.
Era o paraíso de um fotógrafo de paisagens.
Com a completa escuridão à noite, e sem poluição luminosa, a aurora boreal dança regularmente pelos céus em noites claras no outono e inverno.
Até mesmo esse fenômeno, conhecido localmente como arsarnerit (“aqueles que jogam bola”), tem uma conexão com a caça: acredita-se que as luzes sejam as almas de crianças brincando com um crânio de morsa.
Os ‘fantasmas do Ártico’
Depois de cinco longos dias de viagem, chegamos a Kap Hope, um pequeno aglomerado com cerca de 20 cabanas antigas a 14 km a oeste de Ittoqqortoormiit.
Exaustos e com muito frio, nós seis desenrolamos sacos de dormir em uma das cabanas.
Na manhã seguinte, quando espiava por uma pequena janela com binóculos, Danielsen gritou de repente: “Urso polar! Urso polar!”
Minha adrenalina estava bombando enquanto eu pensava em fotografar o maior carnívoro terrestre do planeta — um predador de ponta que consegue sentir o cheiro de sua presa a 32 km de distância.
Descemos a encosta da montanha, carregando cuidadosamente nossas câmeras e lentes mais longas.
O urso, a 6 km de distância, permaneceu no gelo por cerca de 20 minutos antes de ir embora.
Eu sonhava em fotografar o que Holko descreve como os “fantasmas do Ártico” — ursos polares cuja pelagem branca se mistura tão perfeitamente com o ambiente, que é difícil vê-los.
Foi a oportunidade em que cheguei mais perto disso.
Ittoqqortoormiit
Há apenas uma casa de hóspedes na comunidade mais remota do hemisfério ocidental, e ela é apropriadamente chamada de Guesthouse (“casa de hóspedes”, em inglês).
Nós deveríamos descansar aqui pelos próximos três dias antes de ir embora de avião.
Depois de quase uma semana no deserto congelado, levou algum tempo para nos acostumarmos com Ittoqqortoormiit.
Você pode atravessar Ittoqqortoormiit a pé em cerca de 30 minutos.
Casas pintadas com cores vivas, em pé na neve branca profunda, dominavam a paisagem.
Grupos de cães estavam acorrentados a trenós vazios, como se fosse um ponto de táxi do Ártico.
Motoneves circulavam pela cidade enquanto as pessoas seguiam suas vidas diárias.
Nos últimos anos, Ittoqqortoormiit tem se anunciado como um destino para aventureiros — um lugar onde você pode caminhar pela tundra, ver icebergs e chegar a uma parte do mundo onde pouquíssimas pessoas irão.
Mas quando um policial (um dos três da comunidade, me disseram) acenou para mim enquanto passava em sua motoneve, eu não me senti mais um aventureiro, mas uma pequena parte desta comunidade distante.
A cidade é composta por uma igreja, uma pequena agência de viagens, uma delegacia de polícia, um bar, uma casa de hóspedes, um heliporto e um pequeno supermercado chamado Pilersuisoq, que é abastecido por duas entregas de navios a cada temporada.
Vagando pelos corredores escassamente abastecidos, fiquei impressionado com o alto custo de tudo. Eu me perguntei como, em um lugar onde havia poucos empregos, os moradores locais podiam pagar esses preços.
Lá fora, as peles de urso polar penduradas em andaimes perto de tantas casas me lembraram das origens desta comunidade.
Eu embarquei nesta aventura para capturar imagens únicas da vida selvagem.
E embora eu não tenha conseguido fotografar os “fantasmas do Ártico”, não importava, pois eu tinha tido a oportunidade de apreciar algo muito maior: a resiliência e a cultura geradas pela vida em um dos lugares mais remotos da Terra.
Confira mais trabalhos do fotógrafo Kevin Hall no site e Instagram dele.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Travel.
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