O furacão Ernesto causou danos devastadores em Porto Rico, em meados de agosto. A tempestade recebeu a avaliação mais baixa da escala Saffir-Simpson —a classificação oficial dos furacões— devido à velocidade dos ventos de 120 km/h.
Mas as tempestades que mal atingem o nível mais baixo da escala de furacões podem causar tantos danos quanto a categoria 5.
Com as mudanças climáticas trazendo tempestades mais fortes e estações de furacões mais violentas, vêm crescendo os alertas para repensarmos nossa forma de avaliação dos furacões.
A escala Saffir-Simpson é amplamente empregada há mais de 50 anos, mas ela apresenta falhas importantes que levam os cientistas a questionar se esta é realmente a melhor solução.
Estão surgindo diversas propostas para aprimorar ou substituir a escala Saffir-Simpson. Com isso, será possível salvar mais vidas, com melhores sistemas de alerta.
O problema da água
Criada no início dos anos 1970 pelo engenheiro civil Herbert Saffir (1917-2007) e pelo meteorologista Robert Simpson (1912-2014), a escala mede a velocidade máxima sustentada dos ventos de uma tempestade. Ela é usada para classificar os furacões em graus de 1 a 5, em que 5 é o mais intenso.
A velocidade do vento é medida por aviões de reconhecimento, conduzidos pela Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (Noaa, na sigla em inglês). Elas lançam instrumentos que medem a pressão, a direção e a velocidade do vento enquanto caem em direção ao mar.
Mas a escala Saffir-Simpson não leva em consideração outros impactos causados pelos furacões, como a maré de tempestade, as fortes chuvas ou as inundações. E a ameaça mais mortal causada pelos furacões vem da água, não do vento.
Na verdade, 90% das mortes relacionadas a furacões em todo o mundo são causadas por afogamento, seja pela maré de tempestade ou pelas enchentes causadas pelas chuvas extremas, segundo o Centro Climático da Universidade Estadual da Flórida, nos Estados Unidos.
“A escala Saffir-Simpson é inadequada”, afirma o cientista Michael Wehner, do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, na Califórnia (Estados Unidos). Wehner é especializado nas mudanças de comportamento dos eventos climáticos extremos.
“A questão é que a escala é simplesmente uma medida da maior velocidade dos ventos em qualquer ponto da tempestade”, explica ele. “Mas a maior parte dos danos é causada pela água, não pelo vento.”
Alguns dos furacões que causaram mais prejuízos até hoje —como o Sandy— eram tempestades categoria 1, com velocidades do vento relativamente baixas. Mas essas tempestades, às vezes, podem causar sérias inundações no litoral.
As águas do Sandy ultrapassaram em 53% as planícies de inundação mantidas por 100 anos, danificaram centenas de milhares de residências e causaram danos estimados em US$ 88,5 bilhões (cerca de R$ 485 bilhões).
“A velocidade máxima do vento tem muito pouca relação com a maré de tempestade”, explica o professor de meteorologia Vasu Misra, do Centro de Estudos de Previsões Oceânicas e Atmosféricas da Universidade Estadual da Flórida. “A maré de tempestade é proporcional à tensão do vento.” Ele explica que a tensão é a força exercida pelo vento sobre a superfície do oceano.
“Por isso, na verdade, é questão da distribuição horizontal dos ventos em torno do ciclone tropical, não uma estimativa pontual”, afirma ele.
Tamanho da tempestade
Misra destaca que a escala Saffir-Simpson não considera o tamanho geral de um furacão, nem a distribuição horizontal dos ventos.
O professor propôs uma nova medida do poder destrutivo dos furacões, para complementar a escala Saffir-Simpson. Conhecida como Energia Cinética Integrada Rastreada (Tike, na sigla em inglês), ela mede o tamanho do campo dos ventos, além da intensidade e da duração da tempestade.
Em vez de aeronaves de reconhecimento, esta metodologia seria baseada em estimativas de satélite da distribuição dos ventos nos furacões, segundo Misra.
Mas existem diversas dificuldades para a obtenção de dados precisos. Misra destaca que, muitas vezes, existe forte cobertura de nuvens em volta do furacão, o que faz com que surjam “algumas incertezas”.
Ele explica que outro “grande problema prático” é que estas estimativas somente são disponíveis para a bacia do Leste do Pacífico e o Oceano Atlântico, não para o Oceano Índico e o Oeste do Pacífico, devido à localização dos satélites.
Novas tecnologias, como drones marítimos (veículos movidos pelo vento que parecem pequenos botes e medem a intensidade dos furacões), estão ajudando a aprimorar os dados, segundo Misra.
“Mas o custo será um problema”, segundo ele. “Quantos drones marítimos você realmente consegue lançar para [capturar] a distribuição dos ventos em volta de um furacão que pode se espalhar por milhares de quilômetros?”
O professor emérito de ciências atmosféricas Kerry Emanuel, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), afirma que toda a metodologia precisa ser completamente repensada.
“Sou a favor de abandonar a escala Saffir-Simpson e começar de novo”, afirma ele. “Ela não é uma medida muito boa do risco real. O foco tem sido na meteorologia e não no risco e precisamos mudar de direção.”
Mas a escala Tike também pode trazer problemas similares à escala Saffir-Simpson, segundo Emanuel. “Qualquer escala que lide apenas com o vento irá falhar em muitos casos e é por isso que precisamos substituí-la.”
“Nenhuma escala específica pode representar todos esses impactos para todos os locais”, afirmou à BBC o vice-diretor do Centro Nacional de Furacões da Noaa, Jamie Rhome.
Para alertar as pessoas sobre os riscos das marés de tempestade durante os furacões, o órgão estabeleceu um sistema de acompanhamento e alerta de marés de tempestade, segundo ele.
Como os furacões são “fenômenos que trazem diversos riscos, o Centro Nacional de Furacões prefere comunicar os possíveis impactos desses riscos separadamente, pois eles podem ocorrer em diferentes momentos e locais”, segundo ele.
Sinais de trânsito
Emanuel gostaria de ver um novo sistema de classificação que seja “muito similar ao que é usado pelo Escritório de Meteorologia do Reino Unido, que simplesmente avalia a magnitude do risco em uma escala colorida e [emite] um alerta amarelo, laranja ou vermelho”, explica ele.
Os alertas do serviço nacional de meteorologia britânico recebem cores dependendo dos possíveis impactos do evento meteorológico e como esses impactos provavelmente devem acontecer.
“Precisamos mudar para uma estrutura concentrada nas pessoas, não nas tempestades, para os alertas de furacões”, afirma Emanuel.
Uma abordagem mais personalizada, que forneça às pessoas a probabilidade de ocorrência de uma série de eventos meteorológicos graves na sua região, ajudaria as pessoas a compreender o nível de risco e tomar as precauções necessárias, segundo ele.
“Precisamos de um aplicativo de celular separado que seja dedicado ao risco e saiba onde você está, para poder informar qual é a probabilidade de incidência de ventos destrutivos na sua comunidade ou de níveis de água que irão inundar a sua casa”, explica Emanuel. “Já fazemos isso para as previsões comuns do tempo.”
Ele destaca que existe entre cientistas o sentimento de que “o público não é suficientemente sofisticado ou inteligente para interpretar isso”, ressaltando que ele não compartilha esta opinião.
Mas a simplicidade da escala Saffir-Simpson não facilita a compreensão do público.
“É fácil comunicar a ameaça do ciclone tropical com base nessas categorias e, provavelmente, esta é a principal razão da relutância para substituir a medida por qualquer outra coisa”, explica Misra.
Wehner afirma que é importante que o público compreenda que “a escala Saffir-Simpson não conta toda a história”.
“Acho que o público se beneficia com informações mais detalhadas”, afirma ele. “O Centro Nacional de Furacões fornece isso e os bons meteorologistas da imprensa fazem uso eficiente dessas informações.”
Furacões categoria 6?
Os furacões estão ficando mais intensos e destrutivos devido ao aumento da temperatura dos oceanos, que alimenta ainda mais os furacões.
Um estudo de 2020 concluiu que, atualmente, as tempestades têm 25% mais probabilidade de atingir o limite mínimo de 180 km/h para que sejam consideradas grandes furacões (categoria 3 e acima) do que 40 anos atrás.
Com furacões mais intensos e velocidades dos ventos mais altas, seria conveniente acrescentar a categoria 6 à atual escala Saffir-Simpson?
Em fevereiro de 2024, Michael Wehner e seu colega James Kossin, cientista climático e atmosférico aposentado da Noaa, publicaram um documento sobre as desvantagens de uma escala Saffir-Simpson que vá apenas até a categoria 5.
“Não existe mais razão para que [a escala] tenha um teto”, declarou Kossin à BBC durante o furacão Beryl, no início de julho.
Existem furacões que já ultrapassaram o limite teórico da categoria 6, como o furacão Patrícia em 2015 e o tufão Haiyan, em 2013.
Mas o simples acréscimo da categoria 6 para descrever tempestades mais fortes pode trazer mais prejuízos do que benefícios, segundo Kossin.
“Na verdade, acho que é uma ideia terrível, por muitas razões.” Ele alerta, por exemplo, que uma categoria mais alta poderá simplesmente fazer com que as pessoas tratem a categoria 5 como sendo menos perigosa.
“É simplesmente o comportamento humano”, afirma Kossin. “Algumas pessoas irão procurar qualquer desculpa para evitar a evacuação.”
Wehner acredita que o Centro Nacional de Furacões da Noaa deveria, em última análise, decidir se deve acrescentar a categoria 6 à escala atual.
Jamie Rhome afirma que a categoria 5 já descreve “danos catastróficos” causados pelo vento. “Por isso, não está claro se haveria necessidade de outra categoria, mesmo se as tempestades ficarem mais fortes.”
Como a maioria das mortes relacionadas a furacões é causada pela água, não pelo vento, “não queremos enfatizar demais o risco dos ventos, depositando muita ênfase na categoria”, segundo Rhome.
Wehner é da mesma opinião. Para ele, “os riscos dos furacões são mais complexos do que pode transmitir um simples número”.
Mas alguns cientistas realmente defendem a adição da categoria 6.
Emanuel afirma que, se formos ficar com a escala Saffir-Simpson, expandi-la até a categoria 6 enviaria uma “mensagem clara para as pessoas de que as mudanças climáticas estão influenciando os furacões. Sua principal utilidade seria chamar a atenção para este fato.”
Mas outras pessoas manifestam preocupação com esta classificação.
“Qualquer coisa acima da categoria 3 deveria ser considerada uma ameaça”, segundo Vasu Misra. “As pessoas não deveriam esperar a categoria 6 para agir ou reagir.”
A assistente da divisão de pesquisas sobre furacões da Noaa, Heather Holbach, também receia que o aumento do número de categorias possa prejudicar a seriedade das pessoas em relação às tempestades com avaliações mais baixas. Ela não vê motivo para criar a categoria 6, por motivos científicos.
“Uma das minhas preocupações seria se isso irá fazer alguém se preocupar menos com um furacão categoria 1 ou 2, que ainda são ameaças significativas”, diz ela. “Acho que existe um enorme componente de ciência social que precisa ser muito mais compreendido.”